quinta-feira, 19 de março de 2020

EU NO VÍRUS


Proliferação de coronavírus leva OMS a declarar pandemia
EU NO VÍRUS
                                                               Amanda Magalhães Alkmim Thramm
 
Sinto que minhas pernas estão trêmulas e um friozinho na barriga. É o primeiro festival de música clássica em Campos de Jordão, 1970. Quando escrevo essas linhas esse fato já ocorreu. Aos poucos vou me acostumando a escrever minhas memórias. O por quê disso relatarei agora.
Há quarenta anos, viviam nessa cidade, meu tio avô Alexandre e sua mulher Beatriz. Quando cheguei aqui tirei o papel amassado do meu bolso onde mamãe tinha escrito o endereço deles. Apesar de já falecidos seu mordomo fiel, Juvenor, cuidava da residência do casal. No testamento dos mesmos constava que: Juvenor teria o uso fruto dos bens deles e após sua morte, o Instituto fisioterápico criado pelo doutor Hamilton Stanislaw, seria o proprietário.
Toquei a campainha e fiquei aguardando. No ínterim, reparava o jardim bem cuidado e o estilo neoclássico daquela construção. Foi aí que surgiu uma figura delineada na veneziana da porta. Juvenor já estava bem velho. Eu conseguia ouvir o barulho de seus chinelos tocarem intermitentes o assoalho.
- Pois não.
- Como vai Juvenor? Eu sou o João Alfredo, sobrinho neto do Sr. Alexandre.
- Entre, meu filho. Quando você nasceu, sua mãe me enviou uma foto. Como ela está? 
- Está um pouco doente. Nem pôde vir aqui pra ver minha apresentação.
- Você é músico, eu sei. O Sr. Alexandre também tocava o piano muito bem.
Vi, num canto da sala, um belo piano de cauda Steinway e pedi a Juvenor para me deixar tocá-lo.
- Sinta-se em casa, Sr. João Alfredo. Não há nada mais justo, já que o piano permaneceu por três gerações com a família Peixoto.
Comecei a tocar minha música favorita “Convite à Valsa” de Weber. Fiquei completamente absorto e não percebi as lágrimas que escorriam no rosto enrugado, porém sereno de Juvenor. Lembranças remotas vieram em sua mente:
- Beatriz querida, venha até a sala, vou tocar a nossa música.
- Alexandre... Eu estou me sentindo mal, minha vista está turva.
- Sente-se, meu bem. Está quente, com a face vermelha. Juvenor, por favor, quero que telefone para o Dr. Hamilton e peça que venha aqui.
- Não é necessário querido. Daqui a pouco estarei melhor.
- Nada disso, Beatriz. Essa é a segunda vez que se sente mal.
- Está bem. Mas só se tocar para mim.
- Minha mulher se tornou uma dama muito dengosa. Contudo, me tornei um cavalheiro submisso e apaixonado.
- E muito sedutor.
- O que devo tocar?
- Convite à Valsa.
- Não se cansa de ouvi-la?
- Jamais. E cada vez que a ouço, lembro-me do nosso primeiro baile, a primeira música...
Mais tarde...
- Dr. Hamilton, o que ela tem?
- Parece uma virose. Vamos fazer uns exames e observá-la. Mantenha-a sempre em repouso.
“Que reviravolta! O lar dos Peixoto nunca mais seria o mesmo”.
- Juvenor, atenda rápido a porta, deve ser o nosso médico.
- Bom dia, Alexandre! Eu trouxe os resultados dos exames.
- Fale logo, Doutor. O que minha mulher tem?
- Infelizmente o que eu suspeitava. Varíola.
- Não é possível! O que vamos fazer?
- Ainda não temos um tratamento eficaz. Os estudos da vacina na Europa estão avançados, mas aqui no Brasil, estamos pesquisando...
- Diga que tudo vai ficar bem, por favor.
- Faremos o possível Alexandre. A doença está num estágio evoluído. O importante agora é levá-la para o hospital e isolá-la.
- Nada disso.
- Entenda,  Alexandre, ficar aqui não vai ajudar nada. E você corre o risco da contaminação!
- Eu vou cuidar dela. Será que não entende Doutor? Ela é minha vida!
- Está certo. Eu virei aqui todos os dias.
“E os dias foram-se passando, os sintomas agravando. Dentro de um mês, Beatriz suspirou pela última vez”.
- Sr. Alexandre, coma um pouquinho. Fiz aquela massa que o senhor gosta.
- Não quero nada, Juvenor.
- O Dr. Hamilton telefonou e virá aqui hoje.
- Para quê?
- Eu disse para ele que o senhor está se alimentando mal, sua face está avermelhada e suponho que tem tido muita febre.
- Esqueça isso, Juvenor.
- Deve ser o médico. Com licença senhor.
- Como vai, Alexandre?
- Como posso Dr. Hamilton.
- Juvenor disse que não tem ido à fábrica, não atende o telefone, não recebe ninguém...
- Estou com o vírus doutor. Acabou.
- Não, Alexandre. Temos uma chance. Aquela pesquisa que já mencionei, houve avanços. A vacina esta sendo testada na Europa pela Fundação Pasteur. Eu mesmo consegui desenvolvê-la me correspondendo com os cientistas franceses. Aceite o tratamento. Por favor.
- Ser uma cobaia, quer dizer?
- Não. Ajude o meu instituto. É importante! Vai salvar muitas vidas, inclusive a sua.
- Isso não é certo! E Beatriz? Era quem eu queria salvar!
- Não houve tempo. Faça isso pelos outros. Ela era tão caridosa, sensível e corajosa.
- Era mesmo. Tem razão, eu aceito.
“O tratamento começou. Algumas pílulas para aliviar os sintomas, uma dieta equilibrada e muito repouso. Foi sugerido que escrevesse as reações e essas notas seriam anexadas aos relatórios da pesquisa”.
Não sei por que razão Juvenor resolveu me mostrar algumas anotações do meu tio. Comecei a lê-las e não parei mais. Até o fim.
“Hoje minha face está menos vermelha, mas os calafrios não cessam. Acendi a lareira. Fiz isso várias vezes para aquecer a Beatriz. Ela sempre agradecia com um tímido sorriso”.
“Dona Cotinha veio me visitar hoje. Trouxe um chá de ervas para ceder minha febre interna, segundo ela . Havia resolvido não tomar. Só que lembrei que Beatriz não aprovaria. Toda quarta-feira ensinava bordado para as idosas da rua. Mudei de idéia. Não sei se diminuiu a tal febre interna, mas aqueceu um pouco meu coração”.
“Não me sinto bem quando venho ao hospital. Dr. Hamilton insistiu em me apresentar à jovem Mirtes. Ela também faz parte do grupo de experimentação. È muito bela a moiçola. Mal me conheceu e me contou com entusiasmo como havia melhorado. Acho que a razão das diferenças de nossos quadros de saúde, é a sua vontade de viver. Eu  confesso que em mim, isso não é freqüente”.
“Já faz três meses que estou me tratando. As erupções aumentaram. A cada complicação faço associação com os últimos dias de Beatriz. Estudei tanto sobre a doença nesses dias que me tornei íntimo desse vírus. Fico me perguntando qual é o propósito disso tudo. Minha mente está tão desnorteada que, ás vezes, não sei quando há uma manifestação do meu organismo ou do vírus. È o clímax do imponderável. Eu no vírus. Olhei pela janela e vi nosso jardim. Como estão lindas as margaridas...”.
- Que melancolia, Juvenor!
- É verdade, Sr. João Alfredo. Essa casa também retrata muita tristeza.
- Nunca teve vontade de sair daqui?
- Não. Aqui existe dois mundos. O que o senhor está vendo e o que eu conheci quando seus tios eram vivos. É isso que me mantém aqui.
Meu grande dia. Abrem-se as cortinas, agora sou eu e meu velho companheiro, o violino. A platéia está muda, olho em minha volta e não reconheço ninguém. Espere! Conheço esses passos! Vejo descendo entre as fileiras do auditório, uma figura esguia, terno preto, bengala e chapéu. Reconheço. Juvenor. Agora sim, “Convite à Valsa”.
 

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