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Proliferação de coronavírus leva OMS a
declarar pandemia
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EU NO VÍRUS
Amanda Magalhães Alkmim Thramm
Sinto que
minhas pernas estão trêmulas e um friozinho na barriga. É o primeiro festival
de música clássica em Campos de Jordão, 1970. Quando escrevo essas linhas esse
fato já ocorreu. Aos poucos vou me acostumando a escrever minhas memórias. O
por quê disso relatarei agora.
Há quarenta
anos, viviam nessa cidade, meu tio avô Alexandre e sua mulher Beatriz. Quando
cheguei aqui tirei o papel amassado do meu bolso onde mamãe tinha escrito o
endereço deles. Apesar de já falecidos seu mordomo fiel, Juvenor, cuidava da
residência do casal. No testamento dos mesmos constava que: Juvenor teria o uso
fruto dos bens deles e após sua morte, o Instituto fisioterápico criado pelo
doutor Hamilton Stanislaw, seria o proprietário.
Toquei a
campainha e fiquei aguardando. No ínterim, reparava o jardim bem cuidado e o
estilo neoclássico daquela construção. Foi aí que surgiu uma figura delineada
na veneziana da porta. Juvenor já estava bem velho. Eu conseguia ouvir o
barulho de seus chinelos tocarem intermitentes o assoalho.
- Pois não.
- Como vai
Juvenor? Eu sou o João Alfredo, sobrinho neto do Sr. Alexandre.
- Entre, meu
filho. Quando você nasceu, sua mãe me enviou uma foto. Como ela está?
- Está um
pouco doente. Nem pôde vir aqui pra ver minha apresentação.
- Você é
músico, eu sei. O Sr. Alexandre também tocava o piano muito bem.
Vi, num canto
da sala, um belo piano de cauda Steinway e pedi a Juvenor para me deixar
tocá-lo.
- Sinta-se em
casa, Sr. João Alfredo. Não há nada mais justo, já que o piano permaneceu por
três gerações com a família Peixoto.
Comecei a
tocar minha música favorita “Convite à Valsa” de Weber. Fiquei completamente
absorto e não percebi as lágrimas que escorriam no rosto enrugado, porém sereno
de Juvenor. Lembranças remotas vieram em sua mente:
- Beatriz
querida, venha até a sala, vou tocar a nossa música.
- Alexandre...
Eu estou me sentindo mal, minha vista está turva.
- Sente-se,
meu bem. Está quente, com a face vermelha. Juvenor, por favor, quero que
telefone para o Dr. Hamilton e peça que venha aqui.
- Não é
necessário querido. Daqui a pouco estarei melhor.
- Nada disso,
Beatriz. Essa é a segunda vez que se sente mal.
- Está bem.
Mas só se tocar para mim.
- Minha mulher
se tornou uma dama muito dengosa. Contudo, me tornei um cavalheiro submisso e
apaixonado.
- E muito
sedutor.
- O que devo
tocar?
- Convite à
Valsa.
- Não se cansa
de ouvi-la?
- Jamais. E
cada vez que a ouço, lembro-me do nosso primeiro baile, a primeira música...
Mais tarde...
- Dr.
Hamilton, o que ela tem?
- Parece uma
virose. Vamos fazer uns exames e observá-la. Mantenha-a sempre em repouso.
“Que
reviravolta! O lar dos Peixoto nunca mais seria o mesmo”.
- Juvenor,
atenda rápido a porta, deve ser o nosso médico.
- Bom dia,
Alexandre! Eu trouxe os resultados dos exames.
- Fale logo,
Doutor. O que minha mulher tem?
- Infelizmente
o que eu suspeitava. Varíola.
- Não é
possível! O que vamos fazer?
- Ainda não
temos um tratamento eficaz. Os estudos da vacina na Europa estão avançados, mas
aqui no Brasil, estamos pesquisando...
- Diga que
tudo vai ficar bem, por favor.
- Faremos o
possível Alexandre. A doença está num estágio evoluído. O importante agora é
levá-la para o hospital e isolá-la.
- Nada disso.
- Entenda, Alexandre, ficar aqui não vai ajudar nada. E
você corre o risco da contaminação!
- Eu vou cuidar
dela. Será que não entende Doutor? Ela é minha vida!
- Está certo.
Eu virei aqui todos os dias.
“E os dias
foram-se passando, os sintomas agravando. Dentro de um mês, Beatriz suspirou
pela última vez”.
- Sr.
Alexandre, coma um pouquinho. Fiz aquela massa que o senhor gosta.
- Não quero
nada, Juvenor.
- O Dr.
Hamilton telefonou e virá aqui hoje.
- Para quê?
- Eu disse
para ele que o senhor está se alimentando mal, sua face está avermelhada e
suponho que tem tido muita febre.
- Esqueça
isso, Juvenor.
- Deve ser o
médico. Com licença senhor.
- Como vai,
Alexandre?
- Como posso
Dr. Hamilton.
- Juvenor
disse que não tem ido à fábrica, não atende o telefone, não recebe ninguém...
- Estou com o
vírus doutor. Acabou.
- Não,
Alexandre. Temos uma chance. Aquela pesquisa que já mencionei, houve avanços. A
vacina esta sendo testada na Europa pela Fundação Pasteur. Eu mesmo consegui
desenvolvê-la me correspondendo com os cientistas franceses. Aceite o
tratamento. Por favor.
- Ser uma
cobaia, quer dizer?
- Não. Ajude o
meu instituto. É importante! Vai salvar muitas vidas, inclusive a sua.
- Isso não é
certo! E Beatriz? Era quem eu queria salvar!
- Não houve
tempo. Faça isso pelos outros. Ela era tão caridosa, sensível e corajosa.
- Era mesmo.
Tem razão, eu aceito.
“O tratamento
começou. Algumas pílulas para aliviar os sintomas, uma dieta equilibrada e
muito repouso. Foi sugerido que escrevesse as reações e essas notas seriam
anexadas aos relatórios da pesquisa”.
Não sei por
que razão Juvenor resolveu me mostrar algumas anotações do meu tio. Comecei a
lê-las e não parei mais. Até o fim.
“Hoje minha
face está menos vermelha, mas os calafrios não cessam. Acendi a lareira. Fiz
isso várias vezes para aquecer a Beatriz. Ela sempre agradecia com um tímido
sorriso”.
“Dona Cotinha
veio me visitar hoje. Trouxe um chá de ervas para ceder minha febre interna,
segundo ela . Havia resolvido não tomar. Só que lembrei que Beatriz não
aprovaria. Toda quarta-feira ensinava bordado para as idosas da rua. Mudei de
idéia. Não sei se diminuiu a tal febre interna, mas aqueceu um pouco meu
coração”.
“Não me sinto
bem quando venho ao hospital. Dr. Hamilton insistiu em me apresentar à jovem
Mirtes. Ela também faz parte do grupo de experimentação. È muito bela a
moiçola. Mal me conheceu e me contou com entusiasmo como havia melhorado. Acho
que a razão das diferenças de nossos quadros de saúde, é a sua vontade de
viver. Eu confesso que em mim, isso não
é freqüente”.
“Já faz três
meses que estou me tratando. As erupções aumentaram. A cada complicação faço
associação com os últimos dias de Beatriz. Estudei tanto sobre a doença nesses
dias que me tornei íntimo desse vírus. Fico me perguntando qual é o propósito
disso tudo. Minha mente está tão desnorteada que, ás vezes, não sei quando há
uma manifestação do meu organismo ou do vírus. È o clímax do imponderável. Eu
no vírus. Olhei pela janela e vi nosso jardim. Como estão lindas as
margaridas...”.
- Que
melancolia, Juvenor!
- É verdade,
Sr. João Alfredo. Essa casa também retrata muita tristeza.
- Nunca teve
vontade de sair daqui?
- Não. Aqui
existe dois mundos. O que o senhor está vendo e o que eu conheci quando seus
tios eram vivos. É isso que me mantém aqui.
Meu grande
dia. Abrem-se as cortinas, agora sou eu e meu velho companheiro, o violino. A
platéia está muda, olho em minha volta e não reconheço ninguém. Espere! Conheço
esses passos! Vejo descendo entre as fileiras do auditório, uma figura esguia,
terno preto, bengala e chapéu. Reconheço. Juvenor. Agora sim, “Convite à
Valsa”.
eu quero que o ano vouta
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