sexta-feira, 3 de abril de 2020

O SERTÃO DO VELHO CHICO


 
Amanda Magalhães Alkmim Thramm
Foto: Professor Lázaro Mariano - 13/10/2012 (Estrada para Chachoeira Casca D'anta - São Roque de Minas - Ao fundo a Serra da Canastra)

O psiquiatra Alfredo Diniz chega em Barbacena para o seu primeiro dia de trabalho. Estava ansioso para começar seu projeto de inclusão social dos pacientes permanentes do manicômio. Chamou a assistente social Marlene para relatar o histórico médico do senhor Francisco José Pereira dos Santos, seu primeiro caso.

 - Bem doutor, o seu Chico, como é conhecido aqui, está internado a quase trinta anos. Não tem família e não recebe visitas de ninguém. Pelo visto, o senhor não começou muito bem. Ele só poderia sair daqui para um asilo.
 
- Mas, me fale mais dona Marlene. Como ele se relaciona com os outros pacientes e de onde ele veio?
 - Olha, até que ele é querido aqui. Principalmente pelos casos que conta e pelas músicas que tira na velha viola. Ele veio da cidade de São Francisco, no interior de Minas Gerais.
 
- Pegue o prontuário dele, por favor.

Marlene foi no arquivo, pois há muito ele não adoecia e nem tinha crises. Porém, quando veio para o manicômio, ele estava completamente desequilibrado. Gritava incessantemente por Inocência, uma bela morena recém casada com ele.

Era outubro de 1979, o rio São Francisco subira 13 metros, era a última grande cheia, que inundou a cidade. Inocência tinha atravessado para Santa Izabel de Minas do outro lado do rio. Já havia anoitecido e nada dela voltar. O Chico estava aflito, mas, quem segura a brava morena? Acostumada com o barco e sem temer nem uma tempestade! O seu amor a buscou lá em Carinhanha na Bahia. Seu patrão, o fazendeiro Januário Durães mandou que fosse comprar uma tarrafa do compadre Sebastião. O pescador comprou a passagem do Gaiola e desceu rio abaixo com sua viola e um embornal.
 
Chegando na cidade ao entardecer, cumpriu sua tarefa e foi tocar no “pau do fuxico”, uma imensa árvore na beira do rio. Lá se reuniam homens de Carinhanha, de homens simples até os políticos. Chico começou a entoar uma moda de viola, quando avistou Inocência. O homem ficou embasbacado, o vento suspendia levemente o vestido da moça que cobria o corpo moreno. Era muito bela, a danada da Inocência. Moça independente e decidida pescava mais do que qualquer um do lugar. Chegava a viajar sozinha para vender seus peixes e

alimentava três irmãos menores. Não tinha pai ou mãe. Chico foi ao seu encontro, já tocando uma canção:
 
“Oh, morena bonita do laço de fita, prendeu de mau jeito o meu coração...”

- Quem é ocê, moço? Eu nunca lhe vi aqui.

 - Sou o Chico de São Francisco, morena. Vim aqui mode comprá uma tarrafa pro patrão.
 
O conversê durou horas a fio. Chico prometeu que voltaria. E enquanto isso mandava bilhetes pelo seu Joaquim do Gaiola. Não demorou muito e se casaram. Festejaram na rua mesmo na praça principal, em frente à casa da Careta, uma construção do século XVIII. Leva esse nome porque no alto de sua fachada tem um rosto enorme de um português bigodudo ladeado por dois peixes. Os noivos dançaram o Lundu a noite inteira e o povo de Carinhanha admirava a alegria dos dois.
 
Como já dizia, Inocência demorava voltar de Santa Izabel. Já era noite fechada quando Chico enxergou o barco, ele vinha balançando muito. O tempo estava para chuva e essa não demorou a cair. O coração do pescador saltitava e quase foi a boca quando cansada de pelejar com os remos Inocência perdeu o controle do barco e caiu. Chico se lançou no rio e nadava como um louco para salvar o seu amor. Ela bem que tentou dar algumas braçadas, porém o cansaço a dobrou. Gritava o marido por socorro, mas o rio havia invadido as casas e o povo corria de um lado para o outro tentando salvar o que podia. Quando aproximou da amada, ela boiava sobre as águas do São Francisco. Quando o rio a chamava de volta, antes de afundar, Chico a pegou pelos braços e desesperado chorava e a beijava tanto que junto com ela começou a afundar. Como pôde o rio que tanto amava, motivo de suas modas de viola, arrancar daquele jeito aquela que era sua própria vida? Foi aí, que parou de lutar. Que levasse então ele com ela, para que viver sem Inocência? Contudo, foi lançado pelas águas na beira do rio amigo e alguns pescadores o levantaram e o levaram para um bar.
- Dê pra ele uma dose da marvada, Zé.
  
- Mas é o Chico minha gente! O que aconteceu?

 - Coitado Zé. Inocência é falecida, morreu há pouco no rio. O Chico bem que tentou, só não teve jeito.
 
No prontuário, o doutor Alfredo viu que o paciente havia chegado com um surto psicótico, gritando sem parar o nome de Inocência. Foi levado pelos
 
pescadores, pois tinha dias que gritava para o rio São Francisco devolver a sua morena. Aparentemente não percebia que o tempo passava, cantava e falava dela como se tivesse viajado e iria voltar. Como não tinha parentes, foi ficando por lá. O último registro médico era de vinte anos atrás.
 
Era o dia da primeira consulta. O médico dispensou o uso do consultório e foi encontrar com o Chico no banquinho do jardim.

- Como vai Senhor Francisco. Eu sou o Alfredo, seu novo médico, e eu vou ajudar o senhor.
 
O que isso, doutor? Não se avexe não, eu não to doente, apenas perdi o coração. É que Inocência a falecida, quando partiu, levou ele com ela. Isso foi a uns trinta anos passado. Eu sou um barranqueiro, lá de São Francisco, o senhor conhece?
 
- Não Francisco, eu nunca fui pra aqueles lados.
 
- Oia doutor, cidade boa ta lá. Não sei como ta agora, porque o meu amigo andou fazendo umas bagunças por lá.
 
- Seu amigo?

- É doutor. O velho Chico, meu xará. Foi a maior cheia que se tem notícia, num sobrou barraco em pé na sua beira.
 
- Você não tem vontade de voltar para sua cidade, Francisco?
 
- Ah, não doutor, ele ta brigado com ieu, levou até minha muié. Só que não quero pensar nisso que o peito estufa de dor. Não vou voltar pro meu sertão.

 No ínterim, era o aniversário do rio São Francisco, 500 anos completava o amigo do Chico. E da salinha de televisão, veio correndo o Juraci gritando sem parar.
 
- Vem vê seu Chico, ta passando na televisão sobre o rio da sua terra.

Chico e o doutor foram até a sala e viram a reportagem do estado atual do São Francisco. Maltratado, assoreado e esquecido, agonizava desde Minas, passando pela Bahia, Sergipe e Alagoas. O velho pescador nada dizia, só corriam intermitentes, as lágrimas que suas rugas cobriam.
 
Eu tenho que voltar, doutor. O meu amigo ta morrendo.

 
Conto premiado:
UEMG – Universidade Estadual de Minas Gerais.
UNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros

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